Vendo o passado revisada 05
Meus pais saíram e eu fique a sós em casa. Era domingo. Um breve almoço me fez espreguiçar e deitei no sofá reclinável. O cochilo veio forte.
— Lívia, Lívia! Oi, estou aqui!
Estava ainda aprisionada no corpo de carne. Ouvi tudo e despertei.
— Lumen, é você?
— Sim, amiga. Cá estou. Hoje vamos fazer uma viagem pelo tempo.
— Como assim, o que você pretende?
— Lembra de quando foi o nosso primeiro encontro? Eu estava perdida na floresta e você ainda era um pequeno animal, que me salvou e mudou o curso de minha história.
— Sim, eu me lembro. Parece que foi há muito tempo.
Lumen disse que eu me sentiria melhor depois de realizarmos essa viagem no tempo. Seria uma oportunidade para que eu pudesse me desligar um pouco dos problemas do cotidiano. Diante de minha concordância, minha amiga postou a mão sobre minha cabeça. Pediu que eu me concentrasse e levasse a mente para as boas coisas. Imagens reconfortantes, lembranças na prática do bem, um sorriso fraterno. Deitou meu corpo espiritual confortavelmente ao lado do meu corpo de carne, para que eu pudesse ficar energizada. Minha memória começou a se apagar e um leve sono me invadiu. Senti que o teto de minha casa se abrir e eu subi às nuvens e a partir daí ao espaço sideral, a uma velocidade que eu não podia mensurar.
— Agora deixaremos de percorrer o espaço sob o ponto de vista da distância e daremos início a uma outra velocidade, agora através do tempo, em regresso hipnótico.
Entrei em sono profundo, quase letárgico. Comecei a ver inúmeras vidas, o que muito me impressionou, pois eu me via como num filme de curta metragem, em que cada existência durava cerca de alguns segundos. A partir de certo tempo, havia percorrido milhares de encarnações.
— Pronto, chegamos!
Ainda sob o efeito da hipnose, o meu despertar foi aos poucos, até recobrar a consciência, que estava sob o efeito da imposição de Lumen, que me assistia a todo o instante.
— Sim, Lumen, onde estamos?
— Estamos no planeta onde nós nos conhecemos. Veja você mesma.
Notei de longe uma esfera acinzentada. Não havia cores. Era tenebrosa a imagem. Aos poucos fomos nos aproximando da Crosta, que dava mostra de um planeta de pouca evolução. Divisei cenas degradantes. Homens trajados de peles de animal se digladiavam. Mulheres esfomeadas mendigavam pequenas migalhas à mingua de total flagelo. Crianças corriam desamparadas sem qualquer proteção. Chuvas torrenciais e mudanças climáticas pioravam a situação. Tudo dava mostra de total ausência de controle.
Lumen me disse que esse planeta tinha albergado espíritos degredados de outra esfera planetária e que essas entidades utilizaram toda a sua destreza inferiorizada sobre os habitantes pacatos, mas que tudo isso era normal, pois esses espíritos perversos estavam ali para contribuir a benefício do progresso. Sendo o mal o embrião do bem, aquelas entidades inferiores devem servir de auxílio a esses povos de infância humana. Tudo tem um fim previamente determinado e o objetivo é o acerto no bem.
— Que é esse animalzinho, que corre de um lado a outro?
— Sim, é você quando eu a conheci.
Fiquei perplexa diante da cena. De repente, notei uma menina tresloucada correndo de um lado a outro. Apavorada, gritava e corria ligeiro. Em seguida, vi um animal grande a avançar sobre ela. Era um monstro aterrador. Acompanhei de perto a corrida dos dois no meio da floresta escura, e em dado momento notei aquele o animalzinho que atravessou no caminho dos dois. Notei a estratégia da menina que subiu numa árvore diante do ataque da fera, que se voltou contra o pequeno animal.
Acompanhei toda aquela cena difícil e aterrorizante. Diante da fúria do predador, seu rosnar e bruteza, sentia medo e fiquei pálida. A todo o tempo notei que Lumen me amparava e dizia para não me preocupar, pois o que estávamos vendo se referia ao passado que se encontrava escrito e compilado. Nenhum perigo a nos atingir.
— Veja você mesma Lívia! Foi esse o momento que eu a vi pela primeira vez e foi daí que minha vida mudou. Primeiro você salvou minha vida dessa fera indomada. Depois meu comportamento mudou para o bem, quando tive a oportunidade de dispensar meu tempo a seu favor, no zelo e trato, sobretudo quando vi que você não mais tinha certos movimentos do corpo. E foi daí que pude expressar minha gratidão.
Eu via toda aquela cena com o corpo que eu vivo atualmente e isso me intrigava. Por que o regresso no tempo não me levou à consciência daquele animal? Como podia estar ali sem que houvesse alteração em meu organismo astral? Lumen também não sofreu alteração. Por que ela não tem a aparência daquela menina mal saída do reino animal?
Lumen leu o meu pensamento e salientou que há possibilidade de haver regresso sem alterar o organismo astral, por sintonia apenas do ponto de vista externo. Para mim isso era bom, pois se houvesse regresso em meu organismo espiritual, por certo a minha forma física seria a daquele animalzinho, o que impediria a que eu pudesse visualizar e entender toda aquela cena, porque também o meu estágio mental fatalmente sofreria alteração. Além disso, outra coisa me perturbava.
— Lumen, se meu corpo espiritual encontra-se ao lado do meu vaso físico, como explicar de eu estar aqui ao seu lado, a viver este momento com você?
— Do mesmo modo que o espírito se desprende do vaso de carne, há também possibilidade dele se desprender do corpo espiritual por meio de sua aura, como radícula flexível e volátil, mas não totalmente vinculada e que pode tomar forma e deslizar pelo espaço ou pelo tempo, por força de sua mente ou da mente que a comanda. No seu caso, eu fiz a interferência necessária, para que pudéssemos viajar nesse lugar distante, mas com a segurança que o momento requer.
— Ainda tenho dificuldade de entender esse procedimento, pois eu achava que o espírito se acha vinculado ao seu corpo espiritual e dele não de desgruda por nada neste mundo.
— Sim, isso está correto. Não se esqueça de que a aura é um prolongamento do corpo espiritual a se espraiar em torno dele e a de ganhar diversas formas desencadeadas pela mente e sob o comando do espírito, como ente central de toda essa cadeia, ou seja, corpo físico, corpo espiritual, corpo mental ou aura, verdadeira radícula ou raiz que ganha múltiplas formas.
— E como eu, espírito, passei do corpo espiritual para o corpo mental?
— Não se esqueça de que o espírito é uma chama divina. Em verdade, todos estamos vinculados ao corpo espiritual. Mas se o corpo mental é parte do corpo espiritual, não há empecilho para que você navegue de um lado a outro. É lógico que a minha intercessão facilitou a migração, mas não há nisso nenhuma aberração. Agora você está ligada ao seu corpo espiritual por laços imperceptíveis. É que o corpo mental tanto pode estar em torno do corpo espiritual, como pode alongar-se como radícula ou apêndice, ligado por fio quase invisível. Daí a razão nos compele entender que corpo espiritual e corpo mental é um só, porém com dimensões diferentes e sem alterar a flexibilidade e mobilidade do espírito.
— E como eu ganhei a mesma forma física?
— Se o corpo mental é parte do corpo espiritual e se nele há possibilidade de que o espírito possa fazer formas múltiplas, nenhum problema de você ganhar a mesma forma do seu corpo espiritual, que é regido sob o domínio mental, sobretudo pela larga elasticidade de que ele é portador. Lembre-se que cenas degradantes do homem nele se reflete como num filme cinematográfico tridimensionalmente colorizado. O corpo mental é como se fosse o nosso televisor, onde expressamos amor, angústia, mágoas, paixão, ódio, que reflete no corpo espiritual e bombardeia ou harmoniza o corpo de carne.
— Ah! Isso quer dizer que eu não passo de uma miragem, simples cena de cinema.
— Não é esse o caso, porque quem me fala não é o corpo mental, mas o espírito que o comanda. Essa a diferença. O ser central é a centelha que comanda corpo físico, corpo espiritual, corpo mental. Nesse momento eu não dialogo com o corpo mental de minha amiga Lívia. Falo ao espírito, como ser inteligente do Universo. Quando você conversa pelo corpo de carne, não é o vaso físico quem se expressa, mas a entidade que o move. Quem fala, ouve, vê, respira, sente, gesticula, ama, odeia é o espírito, compreende?
Não foi difícil entender toda a colocação posta por Lumen. Melhor ainda é que eu me sentia viva tal como sou no corpo de carne. Cheguei a tocar diversas partes do meu corpo mental, como se a conferir cada um dos membros. Minha amiga sorria com meiguice do meu espanto.
— Lumen, penso que tenho muito a estudar, não acha?
Seu sorriso foi ainda maior. Voltei a assistir aquelas cenas que se passavam diante de mim e tudo me deslumbrava. Eu me sentia como se estivesse confortavelmente vendo uma peça teatral, com a diferença de que podia me deslocar de um lado a outro, andando ou utilizando o processo de volitação. Mesmo segura, sentia medo diante de todas aquelas cenas de pavor, num cenário neblinoso e acinzentado, valendo-me da presença de Lumen como porto seguro.
— Diga, amiga, será que não estamos diante de uma miragem, como se num filme de longa metragem?
— Não, todas essas cenas são verdadeiras e de fato ocorreram. Esse lugar é real, assim como esse planeta e o tempo que nele agora vivemos. Hoje esse orbe existe, mas este cenário encontra-se totalmente modificado, considerando a época em você vive na Terra.
— E como pode o tempo afixar todas essas imagens para sempre?
— Lívia, na vida nada se perde. Tudo fica registrado sem sofrer alteração. Podemos retornar nesse espaço daqui a um milhão de anos, sem que nada venha a se alterar, pois o tempo conserva tudo. Só não podemos alterar o curso da história. Isso seria aberração.
— Matematicamente, como isso pode ocorrer?
— No início, pensavam os estudiosos que o segredo do tempo e espaço fosse armazenado no éter. Einstein propôs que os elementos circulam entre si sem se tocar, propondo que o espaço entre eles deve ser denominado campo. Não podemos olvidar, contudo, que tanto as partículas subatômicas quanto os astros planetários se sustentam amparados na Mente do Criador, e nela são guardados todos os atos e movimentos, de modo a que nada se perde, nada se desvia, nada se altera. Tudo se encontra registrado nessa Força Criadora, que nos sustenta a todo o tempo e que comanda o Universo em todos os tempos. Essa a razão de podermos viajar por meio desse veículo divino e vermos o que fizemos de bom ou de ruim. Pensamos, porque o Criador pensa. Vivemos e nos movemos, porque Ele vive, eis que nele vivemos e nos movemos.
Minha mente estava presa na dissertação de Lumen, ao mesmo tempo em que assistia todas aquelas cenas do animal feroz e da minha amiga, navegando naquele corpo humano, pouco a frente dos primatas.
Notei a fisionomia de Lumen, sempre perto de mim, que igualmente acompanhava o desenrolar de todo aquele cenário tristonho, mas também de muito desvelo a mim dedicado.
— Por que a gratidão a mim dispensada? Eu era apenas um pequeno animal.
Lumen olhou-me atentamente e depois de algum tempo ela disse em foz firme.
— Sei que devemos guardar o momento certo para dizer determinadas coisas. Entretanto, diante de suas indagações, acho que você está em condições de saber a verdade.
— Que verdade?
— Como lhe disse anteriormente, eu mudei para bem. Ocorre que fui parte desses espíritos trevosos e atrasados, expulsos do lar planetário ao qual pertencia. Viemos de um orbe que chegou a um período final de turbulência. Todas as sociedades buscavam a mansidão e a paz e era eu uma das muitas entidades malfazejas, perturbadoras e anarquistas. A intolerância tomava posse daquela turma impiedosa e colérica. Chegou então o momento em que os Arquitetos do Amor Divino tiveram a incumbência de separar o joio do bom trigo, e eu era bem aquela erva daninha, perturbadora da paz e da ordem. A partir da desencarnação derradeira, nossos corpos sofreram restringimento irreversível. Caímos em hibernação pela nossa própria inferioridade. Sucumbidos na ovoidização, fomos selecionados para a longa viagem rumo a este planeta. Aqui padeci várias vidas de inferno.
— Essa ovoidização foi provocada ou foi obra dos Emissários Divinos?
— Há um momento na história do planeta em que isso ocorre aos mutirões, haja vista o grau de estacionamento galgados por aqueles que não conseguem se sublimar no amor e no perdão. O que os Emissário fazem não é senão selecionar toda a turma do mal. Caídos em restringimento do organismo, esses espíritos do mal sentem dificuldades de retornar diante da própria inferioridade que sucumbiram, depois de séculos de auxílio de familiares e do Amor Divino. Essas entidades do mal não se sentem mais a vontade de continuar habitando em uma sociedade que já não suporta erros primários. Esse o momento em que são transportados para outro orbe, local onde deverão recomeçar a tarefa por baixo e de forma rasteira, sem qualquer primor da técnica.
— Lumen, estou perplexa! Jamais poderia imaginar que você foi o que disse ser. Mas então, qual seria a sua contribuição e a de tantos pares seus em prol desses povos singulares e quase bestializados?
— Os povos daqui precisavam de uma energia revigorante que os impulsionassem, ainda que provinda do mal. Viemos com uma inteligência voltada para o mal e aqui encontramos pessoas atrasadas sob o ponto de vista da inteligência. Eles precisavam se intelectualizar e nós necessitávamos nos moralizar. A Providência une essas duas bandas com o fim de integração e regeneração. Nada se perde. Tudo tem uma finalidade. Se o mal costuma vir na frente, o bem será sempre a vitória que a Providência espera.
— Não poderia o mal continuar a contribuir nesse planeta que você veio?
— Há um momento em que o mal interrompe o progresso e impede a continuidade da ordem, e ainda põe risco à segurança do planeta, sobretudo quando a inteligência criminosa se utiliza de ferramentas desenvolvidas pela ciência. O combustível move veículos para o bem e para o mal. O perigo é quando a mente inferiorizada na maledicência se utiliza de engenhos atômicos. Esse o perigo.
— Sim, e desde o momento que você me encontrou, sua vida se resumia em quê?
— Minha vida residia numa desordem sem cessar. Era perturbadora, zombeteira e inimiga da paz. Não conseguia ver a harmonia e punha tudo a desabar. Corri vários riscos e morri várias vezes no mal, mas nunca em mim nascia a vontade de progredir.
— Não compreendo por qual razão você se transformou. Seria só pelo fato de me encontrar machucada e a piedade penetrou em sua alma, e é só?
— Naquela ocasião eu andava muito cansada de muitas vidas sem sentido e em total obscuridade. Sim, o cansaço já fazia parte de mim e eu me sentia muito pesada. Já não tinha forças para mais nada, e qualquer coisa era motivo para que eu me abatesse e caísse em fracasso. Estava exausta. Embora jovem, as reminiscências do mal sobre o mal me faziam um ser exausto. Quando a vi caída e necessitada de auxílio, parece que alguma coisa invadiu minha alma e eu não tive coragem de acabar com sua vida, como antes era o meu feito. Fui ao seu auxílio e daí comecei a ver a vida de forma diferente. Foi isso que ocorreu.
Ouvia tudo com muita atenção, pois aquele momento parecia que Lumen foi abençoada pelo Alto. Não mais havia nela a impetuosidade de antes. Ela achou um novo caminho e por ele seguiu. Vi que sua visão ficou estática, a relembrar aquele episódio que mudou sua vida. Aproximou-se de mim. Recebi abraço envolvente, que se assemelhava ao carinho de mãe à filha. Notei a gratidão se espelhar na face de minha amiga.
Lumen me deu as mãos e juntas caminhamos por pequena estrada junto à gruta que nos era familiar. Fomos até o local onde ela me encontrou acidentada. Entramos na pequena caverna no alto do penhasco, que nos serviu abrigo. Andamos no solo a relembrar todos aqueles momentos difíceis, e que modificou e alterou os passos de um espírito em dívida diante da Providência. Ficamos silentes em todo o trajeto e depois ela me falou.
— O tempo se encontra presente em nossa memória e toda vez que desejamos visitar o passado é só acionar os mecanismos que nos são peculiares, para que ele venha a se aflorar em nossa tela mental. Para isso depende apenas de pequena evolução espiritual e equilíbrio emocional, para que não nos percamos no labirinto da consciência menos preparada.
— Todos nós temos essa condição?
— Sim, o Criador permite que possamos visitar o passado para burilarmos o presente, com vistas a abrilhantar o futuro. Esse intercâmbio nos é possibilitado, pois assim podemos manter o equilíbrio necessário para o fortalecimento de nossa caminhada evolutiva. Volta e meia estou a visitar o passado, junto a todos os que pude ombrear e trabalhar. Vejo sempre as falhas e pendências minhas.
— Falha! Logo de você?
— Oh, querida Lívia, falha sim, sob o ponto de vista de não acertarmos plenamente naquilo que nos incumbimos. Não há aqui qualquer conotação de falta desumada, inconsequente ou pueril. Refiro-me à falha diante do acerto ao qual nos propusemos, mas que não conseguimos atingir em cheio ou em plenitude.
Suspirei aliviada, pois não conseguia ver erro em minha amiga.
— Não se esqueça dos anjos decaídos, cara Lívia. Nós que aqui estamos, não estamos totalmente imunizados do erro e podemos sucumbir, como caem os missionários no compromisso a que se propuseram.
Depois de dialogarmos alguns minutos, Lumen deu início ao avanço no tempo, para que pudéssemos chegar ao estágio em que me encontrava na Terra. A viagem de volta foi mais rápida. Notei que minha amiga me ajustou ao meu corpo astral, que dormia junto ao vaso físico.
Despertada daquele sono profundo, Lumen me levantou devagar. Ficamos em pé e falamos por um quarto de hora. Minha amiga pediu para que eu me internasse no corpo de carne. Após fortes abraços, vi ela subir em forma de esguicho de luz espaço adentro.
Despertei no corpo de carne, que durou um par de horas. Bocejei e fui à cozinha tomar água. Tive apenas lembrança de um sonho com alguém conhecida, mas não me recordava.
Homenageio à minha amiga Amariles Galvani, que muito me ensinou e a quem muito devo como educadora cristã em Cachoeiro de Itapemirim. Nunca vi tamanha garra e vontade de trabalhar. Sua missão era obrada no Centro Jeronymo Ribeiro. O esforço pelo trabalho na evangelização foi e continua sendo parte dessa guerreira de todas as horas. Com voz firme e gesto de decisão, sua imagem ficará para sempre presente em nossa tela mental.